Cartografia das práticas espaciais, artísticas e subjetivas da comunidade queer em Belo Horizonte, nos últimos anos. E sua relação com a micropolítica e o afeto no espaço-público da cidade.
Cartografia das práticas espaciais, artísticas e subjetivas da comunidade queer em Belo Horizonte, nos últimos anos. E sua relação com a micropolítica e o afeto no espaço-público da cidade.
O AFETO
"No meio da fúria da cidade,
onde quase não há sinal de beleza,
e as pessoas estranham gentileza" - Matéria Prima
Sabemos que existem várias definições e tipos diferentes de afeto. Existe o afeto como sentimento ou emoção em diferentes graus de complexidade; o afeto como estima ou inclinação a; o afeto no sentido de ser afetado, impactado por algo ou alguém. A origem da palavra afeto vem do Latim affēctus e significava "afetado, cheio, tomado de, comovido, afetado de vários modos" como adjetivo e um "estado psíquico ou moral (bom ou mau), afeição etc." como substantivo. (Definições de Oxford Languages)
Aqui vou me ater ao afeto como substantivo no sentido do afeto como sentimento, e nesse caso o afeto como a manifestação do amor. Mas também no sentido do afeto como afetação, impacto, afetar algo ou alguém e ser afeto por ele. Nessa segunda definição o afeto não corresponde a ideia de positivo ou negativo, mas a certo impacto que pode ser bom ou ruim. Ou mesmo os dois, o que acontece na maioria dos casos, pois a vida é complexa.
Em nosso cotidiano nas cidades somos afetados constantemente, seja uns pelos outros, seja pela própria dinâmica das cidades.
“Era um dia num ponto lotado
Na hora do rush
Eu a via de longe, parece que usava blush
Tinha traços suaves que contornavam sua face
Pensei no que eu diria se ela se aproximasse
Pois me olhava com curiosidade
No meio da fúria da cidade
Onde quase não há sinal de beleza
E as pessoas estranham gentileza
Resolvi ver se era verdade ou só impressão
Cuidadoso eu fui ao dar um passo em sua direção
Lá tinha muita gente e carros passando a mil
Pra mim ela era a mais bonita do brasil
Pois eu olhava com curiosidade no meio da fúria da cidade
Onde quase não há sinal de beleza
E as pessoas estranham gentileza
Quando tomei coragem coração acelerou, mas ela viu e a alça da bolsa segurou
E eu que achava que ela seria especial
Na sequência passou a viatura policial
Que me olhava com curiosidade
No meio da fúria da cidade
Onde quase não há sinal de beleza
E as pessoas estranham gentileza”
_Música “Curiosidade” do Matéria Prima, 3ªtrack do álbum “Visão”.
Essa música é prova dessa violência urbana que perpassa a vida cotidiana em várias camadas, onde o amor, a gentileza e o afeto, como sentimento de cuidado comprometido com o coletivo, está cada vez mais escasso.

Doutora Nise da Silveira. "Artista, mulher, cientista, revolucionária, psiquiatra e alagoana, entre tantas outras coisas que representou para diversas pessoas, durante toda a sua vida (1905-1999), lutou pela urgente necessidade de rever padrões da sociedade. Rebelde assumida, tinha o afeto como força motora de seus estudos e ferramenta de trabalho. Queria substituir doentes dopados e alienados por pessoas integradas, assistidas e tocadas, ou seja, afetadas. Em vez de choques, a “Emoção de Lidar” e a adoção das artes como método de tratamento. E, definitivamente, a substituição do encarceramento pela liberdade." Disponível em: Nise no CCBB
"Do objeto que já foi do seu afeto", Efe Godoy, 2016. Produzido por DOMA. "De maneira simples, tenta interferir na vida das pessoas por meio da reverberação do afeto, utilizando as redes sociais digitais como ferramenta de interação e estreitamento dos espaços de intimidade entre vida e arte." Disponível em: Efe / Do objeto que já foi do seu afeto on Vimeo
Nas cidades grandes, especialmente do Sul global, como por exemplo Belo Horizonte, isso acontece em um grau muito maior de complexidade. De modo que cada pessoa afeta e é afetada pelos acontecimentos de maneira singular, variando enormemente em várias escalas, desde a metropolitana, até dentro de uma mesma casa.
O indivíduo e a sociedade estão submetidos na cidade a uma infinidade de afetos, bons e ruins. Entretanto o que tem prevalecido, infelizmente, são os afetos negativos como o medo, e a violência, que muitas vezes são utilizados como políticas de dominação. Existe uma música de uma rapper de BH que exemplifica bem essa complexidade de afetos na cidade dominada pelo medo que diz assim:
Se as políticas de dominação utilizam do afeto como impacto através do medo e da violência, é preciso tomar consciência do afeto enquanto sentimento e manifestação do amor como antídoto a essa opressão, assim como afirma Bell Hooks.
Afeto: CARTAS A SPINOZA
"Nise escreveu um livro intitulado Cartas a Spinoza, uma coleção de 7 cartas nas quais ela se dirige ao filósofo holandês Baruch Spinoza como seu mestre, discutindo a importância de seu trabalho científico e filosófico como base para o trabalho que desenvolvia no hospital psiquiátrico.
O afeto, para Spinoza, do verbo “afetar”, é aquilo que move, que toca, que mexe com a pessoa, com sua alma. Esses afetos podem ser de qualquer natureza e são únicos em cada um de nós; existem no espaço da nossa subjetividade. O que aprendemos com Nise e Spinoza é que muitas vezes a percepção de nossos afetos é deixada de lado, porque vivemos num mundo que supervaloriza a racionalidade.
Será que tudo que me é ofertado, tudo que consumo, de bens a relações, me afeta positivamente? Ou será que de alguma maneira até os meus afetos estão condicionados e eu me obrigo a sentir? Saber disso demanda tempo e um olhar profundo para dentro de nós mesmos, mas parece um exercício fundamental, uma vez que é a capacidade de afetar e ser afetado que nos torna efetivamente humanos."
CCBB-BH: Nise no CCBB

Exposição: "Nise da Silveira: A Revolução Pelo Afeto" - CCBB. Curadoria do Estúdio M’Baraká. 8/12/21 a 28/03/22. Exposição Virtual: Nise no CCBB. Catálogo: nise (mbaraka.com.br)